No Brasil de 2025, a notícia de que um ex-presidente da República foi intimado judicialmente dentro de uma UTI já não choca tanto quanto deveria. E esse, talvez, seja o verdadeiro colapso institucional que estamos vivendo: o da nossa capacidade de nos indignarmos com o que é errado — sobretudo quando o errado acontece com alguém de quem a gente não gosta.
Porque não deveria ser preciso gostar de Jair Bolsonaro, comungar das suas ideias ou defender seus atos para reconhecer que o que vimos ontem foi um ato distorcido de Justiça. Um oficial de justiça batendo à porta de uma unidade de terapia intensiva para entregar uma intimação a um homem que acabou de passar por uma cirurgia abdominal complexa. O homem — independentemente do que você ache dele — está com o corpo recém-aberto. E o Judiciário, com a Constituição embaixo do braço, resolveu que era a hora de bater.
O Código de Processo Civil até permite intimação hospitalar. Mas com uma ressalva óbvia: o respeito à dignidade da pessoa humana e a avaliação de que o paciente esteja em condições de entender o que está acontecendo. Quem decide isso? Um médico. Ou deveria. Porque agora, aparentemente, quem também dá parecer clínico é o ministro Alexandre de Moraes. Não bastam os poderes imperiais que o ministro acha que tem.
Na sua decisão, Moraes diz que Bolsonaro participou de uma live na terça-feira, então teria “condições de ser intimado”. Como se falar por vídeo, ainda que sob analgesia, fosse o mesmo que estar em plena capacidade jurídica. Como se dignidade fosse um critério flexível, ajustável à narrativa do momento.
Bolsonaro instrumentaliza sua própria saúde, é verdade. Já fez disso palco e palanque inúmeras vezes desde que foi vítima de uma facada em 2018. Mas isso não dá a ninguém o direito de cruzar os limites que sustentam a liturgia democrática. O devido processo legal, a noção de humanidade diante do sofrimento, a separação entre o que é direito e o que é desejo. Moraes, com frequência crescente, tem preferido o desejo. E não se cansa de atravessar o Rubicão.
Diante de tanta loucura, a toga virou performance, virou espetáculo. Preferem as manchetes ao bom senso, a força bruta ao constrangimento institucional. E aí o processo perde sua autoridade, vira só mais uma trincheira, mais uma arma. E justiça armada, a história já nos mostrou, é o começo do fim. Porque processo penal não é circo, ainda que o réu em questão seja um parlapatão de carreira.
A corda está esticando. E se ela arrebentar, ao que tudo indica, não será pelas mãos de Bolsonaro. Vai ser pelas mãos de quem deveria segurá-la com equilíbrio. Porque até a democracia tem ponto de ruptura e ninguém parece querer ouvir os estalos.
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