De tempos em tempos ganha notoriedade algum tipo de brincadeira ou desafio que, mais do que propor diversão, acaba mesmo é expondo e colocando em risco a saúde e até a vida de crianças e adolescentes instigadas por algum tipo de curiosidade. Uns anos atrás ficou famoso um roteiro de tarefas, nomeado após um grande mamífero que, aqui mesmo no Brasil, terminou com menores de idade tirando a própria vida. O alerta da vez agora envolve um item simples, onipresente e que deveria estar estritamente ligado à higiene pessoal: o desodorante aerosol/spray é o protagonista de uma “dinâmica” de inalação pelo máximo de tempo possível difundida em redes sociais, e que só entre março e abril vitimou uma menina de oito anos e outra de onze, em dois estados diferentes.
A situação traz de volta a máxima da preocupação em relação aos conteúdos de internet consumidos por essas faixas etárias e ainda a necessidade de se discutir a regulamentação do que é disponibilizado online. Um dos episódios desta semana do podcast “O Assunto”, apresentado pela jornalista Natuza Nery, aborda justamente esta questão: o de que redes sociais tornaram-se sinônimo de perigo na palma da mão. De acordo com o Instituto Dimicuida, o Brasil registrou 56 casos de crianças ou adolescentes que morreram ou ficaram gravemente feridos por causa de desafios irresponsáveis espalhados na rede mundial de computadores nos últimos nove anos, ou seja, desde 2014. Que o cenário é grave nem é preciso dizer, mas a questão é pensar a quem – e se – cabe a responsabilização quando uma criança de menos de dez anos morre após ser encontrada desmaiada ao lado de um frasco de desodorante e um smartphone. E, principalmente, como evitar, impedir que se chegue a um extremo tão chocante.
“Responsabilizar ou centralizar nos pais é muito delicado. Porque vai recair quase sempre sobre a mãe, né, visto que há uma realidade de pais saindo para trabalhar enquanto mães ficam. É preciso sim regular esse marco chamado internet, o Estado Brasileiro precisa criar condições para essa regulamentação”, defende a psicóloga Jureuda Guerra, atual presidente do Conselho Regional de Psicologia da 10ª Região Pará – Amapá (CRP 10). Em paralelo, a profissional avalia que é imprescindível que a criança e o adolescente tenham uma navegação supervisionada.

“Abre-se o debate familiar em paralelo: os pais acompanham o que o filho vê, conversam sobre? A escola conversa? Veja só, o governo federal sancionou recentemente a lei que proíbe o celular no ambiente escolar, que foi um ‘para pra acertar’ e foi o mais acertado que podia ter ocorrido. Já se tem dados de crianças voltando a interagir, brincando, vivenciando um lazer sem tela na hora do recreio. Para falar da morte de uma criança de oito, de onze anos por desafio na internet não adianta só focar só na responsabilização familiar, porque é mesmo muito rápido que acontece e não, às vezes ninguém vê!”, dispara Jureuda.
A psicóloga lembra que a criança, o adolescente que tem uma melhor oratória ou bom entendimento do acesso à internet não está necessariamente madura para consumir o conteúdo disponível. “Precisamos voltar à educação conversada, freiriana, do propor, ouvir, falar, isso tem que voltar. E não só nas escolas, mas em casa. Tem rede social que é terra sem lei, então é preciso bloquear determinados acessos a quem não tem maturidade psíquica para decidir sobre o que está vendo. Tem que ter cuidado, até porque esse mesmo terreno dos desafios é o do abuso sexual”, alerta.
Pneumologista Confirma Riscos de Morte Envolvendo Práticas “Desafiadoras”
A professora universitária Marilia Pinheiro, que está vice-presidente da Sociedade Paraense de Pneumologia, informa que a composição desses sprays, encontrados não apenas nos desodorantes, é variável, e que sua inalação é extremamente prejudicial.
Existem os que contém álcool, o que pode ser irritante para as vias aéreas e levar ao broncoespasmo com tosse ou crise de asma. Podem conter gases como butano, isobutano ou propano, que são altamente tóxicos e podem causar asfixia, e é justamente este, em grande parte dos casos, o mecanismo de morte. Ácido clorídrico, que pode causar reação alérgica grave, arritmia e parada cardíaca.


“Em crianças o risco é bem maior do que em adultos, porque pequenas quantidades inaladas de qualquer spray já podem levar a óbito”, reforça a pneumologista. “Crianças têm vias aéreas pequenas, então quantidades menores do spray já são capazes de levar matar, seja por asfixia, arritmia, parada cardíaca ou respiratória”, detalha.
De acordo com a médica, sintomas envolvendo a inalação de spray podem ser de tosse, espirros, falta de ar, incômodo na garganta, e por isso é necessário procurar imediatamente um pronto socorro.
“Os gases que citei, quando inalados, ocupam o espaço do oxigênio, impedindo as trocas gasosas. Com isso, o oxigênio não chega no sangue, o corpo fica desassistido, ocorre a asfixia e o óbito. Esses gases também podem agir no coração, causando arritmia e morte. Eles também agem no Sistema Nervoso Central, provocando sonolência e diminuição do nível de consciência, e consequente parada respiratória”, orienta Marilia.
Responsabilização Legal e Regulamentação da Internet
O compartilhamento de vídeos que incentivam práticas perigosas pode gerar responsabilidade, especialmente quando envolvem crianças e adolescentes. De acordo com a advogada Ivana Melo, atualmente presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Pará (OAB-PA), no âmbito penal, a divulgação desse tipo de conteúdo pode ensejar responsabilização por induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, nos termos do art. 122 do Código Penal, caso se comprove que a postagem incentivou, ainda que de forma indireta, uma conduta de risco que resultou em morte.
Ela destaca ainda que o § 7º do referido artigo determina que o agente será responsabilizado pelo crime de homicídio (art. 121 do Código Penal) quando a vítima for menor de 14 anos ou pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato. Além disso, há também a responsabilidade civil, com base no Código Civil, que prevê indenização quando uma conduta gera dano a terceiros, mesmo sem intenção, desde que haja negligência e nexo de causalidade.
As plataformas digitais também podem ser responsabilizadas caso não retirem o conteúdo ofensivo ou perigoso, conforme estabelece o art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). Em casos notórios e de grave violação de direitos fundamentais, o Poder Judiciário tem reconhecido a possibilidade de remoção imediata, mesmo sem ordem judicial prévia, com base na proteção à vida e à dignidade da pessoa humana (art. 227 da Constituição Federal e art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente).
“A tragédia envolvendo a criança que morreu após inalar desodorante, possivelmente motivada por um vídeo, reacendeu o alerta: o compartilhamento de vídeos com conteúdo perigoso não é ato inofensivo. Em tempos de redes sociais, responsabilidade digital é mais do que ética — é também questão de legalidade”, pondera Ivana. “Importante frisar que, mais do que um dever legal, a supervisão digital é uma medida de proteção. Na era dos “desafios virais”, ela pode fazer a diferença entre o risco e a prevenção”, avalia.
Abandono Digital e o ECA
No caso de vítima fatal, a legislação brasileira permite responsabilizar quem contribuiu para a tragédia — seja por ação ou omissão. A responsabilização pode ser penal, civil e/ou administrativa, dependendo do grau de envolvimento, do dolo ou da culpa, e da omissão frente aos riscos evidentes. A Constituição e o ECA são claros: proteger a vida e a integridade dos menores é dever de todos — inclusive no ambiente digital.
“A crescente exposição de crianças e adolescentes a conteúdos perigosos na internet trouxe à tona o conceito de ‘abandono digital’, que se refere à negligência dos pais quanto ao dever de orientar e monitorar o uso da internet pelos filhos. O Estatuto da Criança e do Adolescente impõe aos pais e responsáveis o dever de cuidado, vigilância e orientação, o que inclui o uso de ambientes virtuais. A omissão desse dever pode configurar violação das obrigações previstas no Código Civil e no ECA, sujeitando os responsáveis a sanções civis ou administrativas e, em casos extremos, penais”, alerta a advogada.
O Marco Civil da Internet, em seu artigo 29, estabelece que os pais ou responsáveis legais têm o dever de zelar pela orientação e supervisão do uso da internet por crianças e adolescentes, assegurando sua proteção no ambiente digital. Além disso, os pais têm responsabilidade civil pelos atos ilícitos cometidos por seus filhos menores no ambiente digital, conforme o artigo 932, inciso I, do Código Civil. Isso significa que, se os filhos causarem danos a terceiros por meio de suas atividades online, – como compartilhamento de vídeos, por exemplo – os pais podem ser legalmente responsabilizados por tais prejuízos.
“A Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, deve ser interpretada conjuntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 17) e com a Lei Geral de Proteção de Dados (art. 14), que impõe requisitos específicos para o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. Essa articulação normativa reforça a prioridade absoluta da proteção integral à infância e juventude também no ambiente digital”, destaca a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-PA.
Manual Lançado Pelo Governo Federal Orienta para Ambiente Digital Mais Saudável
No último dia 11 de março, foi lançado em Brasília (DF) o documento “Crianças, Adolescentes e Telas – Guia sobre Usos de Dispositivos Digitais”, elaborado por um grupo de trabalho que reuniu diversos ministérios, especialistas e instituições ligadas ao tema, incluindo o Conselho Federal de Psicologia (CFP). A publicação está disponível na íntegra nos sites do Governo do Brasil (www.gov.br) e do CFP (site.cfp.org.br).
Resumo das Principais Recomendações:
O manual propõe que o uso de dispositivos digitais seja progressivo, com base no aumento da autonomia de crianças e adolescentes. Algumas das principais orientações incluem:
- Crianças com Menos de 2 Anos: Recomenda-se que não utilizem telas e dispositivos digitais, exceto para contato com familiares por videochamada, sempre com a supervisão de um adulto.
- Crianças Antes dos 12 Anos: Deve-se evitar que possuam aparelhos celulares tipo smartphone. A recomendação é que a posse de aparelhos próprios aconteça o mais tarde possível, sempre que possível.
- Acesso a Redes Sociais: O acesso deve respeitar a faixa etária indicada pela Classificação Indicativa, representada por ícones quadrados coloridos vinculados aos aplicativos nas lojas virtuais. A maioria das redes sociais não foi projetada para crianças e pode estimular o uso prolongado, criando pressão social para que elas se integrem ao ambiente digital.
- Adolescentes (12 a 17 Anos): O uso de dispositivos eletrônicos, aplicativos e redes sociais deve ocorrer com acompanhamento familiar ou educacional.
- Uso de Dispositivos Digitais na Escola: O uso não pedagógico de dispositivos digitais pode prejudicar o processo de aprendizagem e o desenvolvimento de crianças e adolescentes. As escolas devem avaliar criteriosamente o uso de aparelhos, como celulares ou tablets, para fins pedagógicos, principalmente na Primeira Infância. O uso individual desses aparelhos deve ser evitado.
- Aparelhos Celulares nas Escolas: As escolas devem evitar tarefas pedagógicas que incentivem as crianças menores de 12 anos a possuírem celulares próprios ou a utilizarem aplicativos de mensagens. Por outro lado, o uso de dispositivos digitais deve ser estimulado para fins de acessibilidade ou superação de barreiras por crianças ou adolescentes com deficiência, independentemente da faixa etária.
Fonte:
Acesse o documento completo no site do Governo do Brasil ou no site do CFP.