Roma — Aos 88 anos, dom Raymundo Damasceno, um dos oito cardeais brasileiros e arcebispo emérito de Aparecida (SP), mora em Brasília e está em Roma para o funeral do papa Francisco e os preparativos para o conclave. Por ter mais de 80 anos, ele não pode participar da escolha do próximo papa. Em 1970, o então pontífice Paulo VI determinou que cardeais que completarem 80 anos antes do início do conclave estão impedidos de tomar parte do processo.
Na tarde de ontem, dom Damasceno recebeu o Correio no Colégio Pontifício Pio Brasileiro, em Roma, onde estão hospedados os cardeais brasileiros. Ele falou sobre o futuro da Igreja Católica sem a liderança do papa Francisco, abordou os desafios da instituição e descartou uma guinada conservadora. Para dom Damasceno, a Igreja manterá as mudanças promovidas por Francisco, como a sinodalidade e a abertura de evangelização em direção às periferias. Dom Damasceno considera que Francisco foi um papa “singular”, tanto na maneira de governar quanto na simplicidade. O cardeal também considera que, apesar do avanço das igrejas neopentecostais, o número de fiéis na Igreja Católica tem crescido.
Como o senhor vê o Brasil representado no conclave? Quais as chances de termos o primeiro papa brasileiro?
Creio que o número de cardeais brasileiros não seja relativamente grande. No entanto, é um número maior do que o de muitos outros países. Temos os cardeais do Rio de Janeiro (Orani Tempesta); de São Paulo (Odilo Scherer); de Porto Alegre (Jaime Spengler); de Brasília (Paulo Cezar Costa); de Salvador (Sergio da Rocha); de Manaus (Leonardo Steiner); e da Cúria Romana (João Braz de Aviz). Somos sete cardeais que representam o Brasil neste conclave que deverá eleger o novo papa. Eu estou acima da idade de 80 anos que se requer para participar de um conclave. Estou com 88 anos completados. Temos a Itália, em primeiro lugar, em número de cardeais; depois vêm os Estados Unidos, a Alemanha e outros países. Se comparamos o número dos brasileiros com os de cardeais presentes de muitos outros países, nós temos um número pouco maior do que os de nações da América Latina e da Europa.
O senhor tem um palpite sobre de qual região do planeta virá o próximo pontífice?
É muito difícil dizer de qual região e quem será o futuro papa. A gente sabe que o número de cardeais, hoje, é bastante grande. São 135 os cardeais que participarão do conclave; a maioria deles nomeados pelo papa Francisco, ou 80%. Muitos deles ainda não são muito conhecidos, pois vivem em regiões distantes. Como a gente diz, na periferia do mundo, né? É claro que, nesse momento, as congregações gerais permitem que os cardeais se encontrem diariamente, até o início do conclave. Aí eles terão a oportunidade de se conhecer um pouco melhor. É difícil realmente dizer quem surgirá como papa. Aqui corre um ditado muito conhecido em Roma, segundo o qual “quem entra papa sai cardeal”. Temos alguns exemplos. O último papa, Francisco, não constava de nenhuma lista dos futuros papas. Nem na bolsa de Londres, nem entre aqueles nomeados pelos jornalistas. No entanto, foi o escolhido. Então, é sempre uma surpresa, não há dúvida nenhuma.
Quais os legados do papa Francisco?
O papa Francisco teve um pontificado muito singular. Primeiro, na maneira de governar. Ele se caracterizou como um pontificado de um papa muito simples, que, desde o início, marcou a maneira como ele iria governar a Igreja: na simplicidade. A começar por ter decidido viver na residência de Santa Marta, não no Palácio Apostólico. Ele pegou um ônibus para celebrar a primeira missa na condição de papa. No dia seguinte à sua eleição, em vez de pegar um carro com motorista, tomou o ônibus e foi até a capela para celebrar a Santa Missa. Depois, no seu dia a dia, não é? Ele sempre foi um homem muito próximo das pessoas, muito simples e acolhedor. Também muito próximo da imprensa. O papa Francisco nunca se recusou a dar entrevistas a jornalistas em suas viagens apostólicas. Às vezes, durante o voo, ele sempre atendia à imprensa. Teve seu estilo próprio de governar, assim como é algo próprio de cada papa, conforme seu temperamento, sua formação, sua cultura e sua origem. Um papa sempre tem sua marca própria, especial e singular. Francisco governou segundo sua formação e sua história, como jesuíta e latino-americano. Nenhum papa é uma cópia do outro. Cada um tem sua história, sua origem, seu temperamento, sua formação e sua cultura.
O senhor acredita que a Igreja Católica seguirá no rumo da abertura empreendida por Francisco?
Acho que sim. O que o papa Francisco implementou está, de certa forma, no Concílio Vaticano II. Ele insistiu muito em uma Igreja missionária, a Igreja que existe para evangelizar. E traduziu isso em uma frase muito significativa, própria também dele. Ele falava de uma Igreja “em saída”, uma Igreja que vai ao encontro das pessoas para levar o Evangelho, não uma Igreja autorreferencial, que pense em si mesma, mas uma Igreja que sai ao encontro das pessoas. Isso ficou muito marcado em seu primeiro documento, o Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho), logo no início de seu pontificado. Foi um documento programático, que praticamente trazia todo o programa de seu pontificado e que ele desenvolveu ao longo dos 12 anos à frente da Igreja. Também destacou o acento sobre a misericórdia, a bondade de Deus. Deus é coração e não se cansa de perdoar. Nós é que nos cansamos, muitas vezes, de pedir perdão a Deus. Portanto, um Deus bondoso, misericordioso, que acolhe a todas as pessoas que se aproximam Dele. Outra marca, sem dúvida nenhuma, é a sinodalidade. O papa Francisco iniciou esse processo sinodal, foram dois Sínodos realizados por ele. Na Igreja, somos chamados a caminhar juntos. Essa sinodalidade se expressa na comunhão, na participação e na corresponsabilidade. Esse processo, iniciado e bem adiantado, creio que será continuado pelo próximo papa.
Que influência a ala mais conservadora da Igreja tem sobre o Colégio Cardinalício? Ela pode fazer uma diferença no conclave?
Não, creio que a Igreja não é uma uniformidade, é uma unidade e uma comunhão, uma diversidade. Pensar diferente não é tão relevante na Igreja. É importante que sigamos em comunhão uns com os outros. Na Igreja, o princípio e o fundamento dessa unidade e dessa comunhão, visível na fé, é o papa. Pensar diferente, mas manter a unidade e a comunhão, é uma riqueza para a Igreja. A diversidade é uma riqueza nesse sentido, na medida em que não se rompe a comunhão com o papa e na unidade do fé.
De que modo o senhor vê a expansão das igrejas neopentecostais no Brasil e a perda de fiéis da Igreja Católica?
Esse fenômeno estava acontecendo, não é? Pelo contrário, acho que a Igreja está crescendo. Aqui em Roma, participando das exéquias e do sepultamento do papa Francisco, a quantidade de pessoas na Praça de São Pedro, ontem (sábado). Hoje (domingo), a praça estava cheia do mesmo modo que esteve no sepultamento. Sobretudo, havia muitos jovens pelas ruas. Não sei se coincidia com a canonização do jovem Carlo Acutis, um jovem influenciador e muito católico. Talvez muitos que vieram para essa canonização, que não ocorreu, pois o papa veio a falecer, e aqueles que vieram depois da morte de Francisco… Certamente, os dois grupos se juntaram. Roma está cheia de peregrinos, romeiros, visitantes e turistas. Tenho notícias de que muitas pessoas foram batizadas na França e na Bélgica. Na França, falou-se em 12 mil pessoas batizadas na Páscoa. Vejo um crescimento da Igreja Católica, não uma diminuição. Embora, aparentemente, a gente possa pensar que a igreja evangélica está crescendo mais do que a Católica. Quando a gente olha para Brasília, também, o lugar onde vivo e tenho experiência, vejo que nossas comunidades estão sempre participativas. As celebrações costumam estar muito cheias, tanto de jovens quanto de adultos.

Rodrigo Craveiro
Subeditor de Mundo
Jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG) em 1997. Curioso por natureza, adora buscar histórias. Desde 2005, trabalha no Correio Braziliense, onde entrevistou laureados com o Nobel da Paz, embaixadores e ex-presidentes.